Liga da Justiça: Zack Snyder e a sua versão moderna para os heróis gregos clássicos
Com a caneta nas mãos para escrever a sua própria Liga da Justiça, Zack Snyder pode, enfim, permitir que o seu projeto, originalmente desmontado para a versão de 2017 do longa-metragem, agora possua a essência que lhe fora extraída anos atrás. Os culpados? Joss Whedon e executivos da Warner, que assumiram o comando da obra após o cineasta retirar-se da produção para cuidar de questões pessoais. Assim sendo, a comparação entre o primeiro exemplar de Liga da Justiça e o segundo, com as 2 horas de duração que separam um de outro, é crucial para a compreensão do que distingue um produto amorfo, como é a maioria produzida por grandes estúdios, nos quais diretores de cinema são, primeiramente, operários e não artistas, de um que, quando fracassa – e isso se fracassa – fracassa mantendo sua integridade, por bem ou por mal.
No caso de Whedon, o que interessava para o cineasta – responsável também pelos dois primeiros Vingadores – era tornar a criação de Zack Snyder, com todos os seus ornamentos, cenas de 2 minutos de duração transformadas em 4 minutos de duração, em uma obra puramente funcional para os cinemas. Portanto, tudo que não fosse historinha ou piadinha ou combate era cortado, pois, na visão de Whedon para Liga da Justiça, entendeu-se como funcionalidade o passatempo efêmero do espectador, que vê em tela os bonequinhos dos seus heróis preferidos interagindo entre si sem a menor consequência além da brincadeira. Em contrapartida, Snyder, embora mantenha o mesmo corpo de acontecimentos, uma epopeia do Bem contra o Mal, com todas as parafernálias concedidas por esse enunciado, relaciona-se com essas figuras de forma mais pretensiosa, como se os super-heróis que povoam os gibis desde o século passado fossem representações modernas dos heróis gregos.
Logo, o brinquedo de plástico do Flash (Ezra Miller), manuseado por uma criança de 11 anos que não demora para colocar o personagem em cima da Mulher-Maravilha (Gal Gadot) – heroína que no longa de 2017 parecia ser realmente imaginada pela mente infantil de uma criança entrando na puberdade – é renegado, em prol do culto heroico de Snyder. Por consequência, o cineasta joga no lixo as miniaturas desses personagens, que decoravam o filme de Whedon, pois, no lugar delas, ele prefere estátuas, pinturas e monumentos. Só que esses retratos – em slow-motion, para a presença não ser passageira – não são de Deuses – o Deus é o Superman (Henry Cavill), clamado em um ato de fé antes do clímax como se clamava por Zeus nas batalhas históricas.
Em 4:3, concentradas nos planos por essa razão de aspecto, as esculturas são na realidade de heróis clássicos, os quais, embora especiais – seja reis, príncipes, semideuses ou metahumanos -, caminham entre o povo, bebem com o povo e lutam com o povo. Diante disso, o que o diretor quer concatenar em 4 horas de duração – mais ainda, se contarmos o planejamento antigo para uma continuação desse filme -, já é exemplificado dentro do próprio longa-metragem, na sequência estendida que reconta a vitória da Terra, pela aliança de inúmeros povos, sobre as forças de Darkseid (Ray Porter). Nesse corte, ao passo que o inimigo e o contexto são omitidos no original, onde o flashback ocupava menos que um terço da narração de Gadot na versão de Snyder, o cineasta consegue até mesmo conter o impacto negativo da performance da intérprete pelas imagens que acompanham ela, menos aleatórias que uma mera ilustração, porque, ao menos, constroem o que interessa ao cineasta ao ter como fim retomá-las no futuro com os heróis dos gibis.
Enquanto o interesse de novo de Joss Whedon era mutilar essa cena ao necessário para ela simplesmente existir, ainda que efeito nenhum fosse criado, Snyder propõe um senso superior de perigo, de sacrifício e união, semelhante com o que acontece noutras oportunidades, como a do roubo da Caixa Materna de Themyscira. Deuses golpeiam Darkseid cada um de uma vez, exércitos de homens de diferentes etnias são representados – no original, a presença de guerreiros africanos era um detalhe nos planos, não que agora seja realmente um destaque – e até mesmo a derrota de um Lanterna Verde ganha algum contorno dramático para além da referência nerd – o anel que flutua e vai para outro hospedeiro é uma passagem de bastão que torna a missão de alguém chamado na narração de “guardião do céu” menos frágil do que a sua morte indica.
Por isso, o pretexto de Liga da Justiça é basicamente recriar a “Era dos Heróis”, diante tanto da existência de um passado utópico, a iminência de um futuro distópico – as premonições de Bruce Wayne (Ben Affleck) em Batman vs Superman, as de Ciborgue (Ray Fisher) e o epílogo – e, por fim, as contradições de um presente que vive todas essas possibilidades ao mesmo tempo. Não à toa que a grande resolução desse novo filme conta com o Flash voltando no tempo, depois da Liga fracassar, e proferindo: “Faça o seu próprio futuro. Faça o seu próprio passado. É tudo agora”. Entre o niilismo de Zack Snyder, sua suspeita dessas figuras – a qual representava sobretudo em seu “Watchmen” – e a retomada de uma glória heroica; entre o Superman desvirtuado dos “sonhos” de Wayne – independentemente de ser mal encaixado nesse corte do longa-metragem – e o Superman de peito aberto com o S de esperança, num mar de ambiguidades é onde Liga da Justiça se encontra.
Por outro lado, justamente por ser tão ambíguo que o cineasta é quem é. Se Joss Whedon acrescentava uma família russa ao cenário de guerra do clímax do seu longa, para dar algum caráter humano a um ambiente que, fora isso, era composto apenas por monstros de computação gráfica – como acontece agora -, Zack Snyder ignora bastante essa relação mais realista do que seria cuidar do mundo e os seus inúmeros problemas se possuíssemos superpoderes. Sim, o Ciborgue ajuda na vida de uma família americana pobre, mas o ponto não é esse, porém, o impacto daquilo no próprio herói. Já o Flash protegendo o seu futuro par é mais uma possibilidade de pertencimento para o personagem, que notoriamente aparenta desconexão com o mundo, que uma relação heroica ordinária – até porque o fato da menina ser um flerte antes de tudo impede o ato de ser altruísmo puro, no entanto, motivado por uma conexão particular, culminando numa cena em que ele sobretudo contempla a jovem com seu poder.
Para o herói grego, a jornada é, num primeiro lugar, interior – Hércules, o maior desses, têm nos seus 12 trabalhos acima de tudo uma penitência. Logo, “com poderes vem grandes responsabilidades” não conversa de fato com a ótica de Snyder para esses personagens, pois o longa não questiona se Ciborgue ajudará ou não aquela família ou Aquaman (Jason Momoa) impedirá ou não um homem de se afogar – o confronto se direciona para o impacto dessas ações neles mesmos. No fim das contas, Liga da Justiça é menos sobre salvar o mundo e mais sobre o Flash tornando-se amigo do Ciborgue, ambos solitários – a piada de aceitar entrar na equipe, mantida por Joss Whedon, entretanto, sem futuro no corte original, agora reverbera para o soquinho entre os dois na pintura final do sexteto vitorioso.
Portanto, chega a ser irônico que um filme de 4 horas, que se organiza em capítulos literais nomeados na tela, seja menos episódico que um filme de 2 horas, nas quais uma sequência de ação simplesmente acontecia e aguardava a próxima suceder, enquanto toda a verborragia do Snyder e alguns excertos dos arcos pessoais dos personagens resistiam para encontrar espaço. Em contrapartida a isso, a introdução dessa versão já coordena toda a premissa do restante da obra, porque parte justo da morte do Superman, ressoando não de modo meramente figurativo – a perda da esperança –, contudo, tornando-se também costura narrativa. Por sua vez, Whedon inseria uma cena na qual o Batman encontrava um parademônio antes mesmo de qualquer menção à morte do Homem de Aço, rompendo, por isso, o encadeamento, com explicações em demasia, mas ao menos preciso, de Zack Snyder.
Logo, num longa-metragem como o anterior, uma decisão como a da ressurreição do Superman era insípida, pois não acompanhava a meditação do cineasta sobre o impasse todo em que os heróis se debruçavam, em que reviver um Deus, com os poderes de um Deus, seria uma faca de dois gumes. Não apenas, Joss iria resolver o embate final sem a necessidade dos demais personagens – mundanos perante o Superman, porém, partes essenciais do exército de homens, atlantes, amazonas e alienígenas que a mitologia de Snyder possuiu no passado e buscava resgatar no futuro. Em face de Whedon secando as 4 horas à sua causa e consequência mais banal – a terceira Caixa Materna capturada sem a maior elaboração dessa versão, e o Superman revivendo e resolvendo a confusão -, não havia como as duas visões se conciliarem naquele monstro de Frankenstein de antes, somente nessa versão.
Contudo, não é porque o Flash brinca com o Ciborgue que poderia desenterrar em um nanosegundo o Superman, que isso signifique, por mais que se mantenha uma integridade no processo, que o tempo fora plenamente aproveitado, pois há sim a permanência de muita manobra desnecessária na megalomania do cineasta – ora, o Lobo da Estepe (Ciarán Hinds) precisava mesmo possuir motivações maiores do que ser mero assecla de Darkseid? Fora isso, Bruce, Diana e Arthur têm arcos não tão bem sublinhado. Embora, não como a versão original, haja indícios de tramas prosperando para eles – Batman abandonando o seu ceticismo, a Mulher-Maravilha o seu anonimato, e o Aquaman assumindo seu lugar em ambos seus mundos. Mas Snyder, ao apressar relações e questões que poderiam ser pivotais para o alcance de toda uma era de heróis modernos dramaticamente profunda – como a rixa entre atlantes e amazonas -, só as pontua, entretanto, não as explora de fato.
E o que é o seu Superman enfim, senão exemplo máximo da mistura, sempre conflituosa, entre um Deus grego, o Deus dos cristãos e o super-herói de HQs? De toda maneira, o cineasta continua sendo um dos poucos na cena de adaptações de quadrinhos a entender heróis de gibis não como oportunidades para lojas de brinquedos vender mais e mais bonecos, no entanto, como oportunidades de explorar símbolos, ainda que tão confusos, tão distantes da utopia moral que deveriam representar, mas sem serem necessariamente desesperança por isso, contudo, esperança apesar disso. No fim das contas, se for para Zack Snyder fazer o seu Flash correr, que seja para parar o tempo, não acelerar no tempo, mas fazer com que cada passo seja contemplado e o próximo adiado o máximo possível. Talvez assim tudo volte a ser mais simples.