Crítica – What If…? (Primeira Temporada)

Por Gabriel Carvalho

“Vi muitos viajantes espaciais nos meus dias, garoto. E se eu aprendi alguma coisa observando você foi que em qualquer planeta, entre quaisquer pessoas, não há um lugar nessa galáxia a que você não pertença.”

Essa crítica contem spoilers

No primeiro episódio de What If…?, que coloca Peggy Carter (Hayley Atwell) para ocupar a posição pertencente a Steve Rogers (Josh Keaton) na franquia de cinema da Marvel Studios, os espectadores que assistiram a Capitão América: O Primeiro Vingador, longa-metragem de origem do personagem-homônimo, não estranharão a história da Capitã Carter. Pelo contrário. O episódio, partindo de uma pequena variante na trama original, reconta os eventos do filme de 2011 sem ignorá-los. Em ambas as obras, a infantaria 107 de Bucky (Sebastian Stan) é resgatada, um trem em movimento é invadido e alguém importante supostamente morre na missão. Porém, acima de tudo, os personagens principais se apaixonam, apenas para serem separados tragicamente, com a promessa de dança ficando para trás e, anos depois, o presente tornando-se um lugar de despertencimento. Para os Capitães, seja América, seja Carter, o deslocamento temporal não é uma variável, mas uma constante, algo essencial de um personagem descrito pelo seu anacronismo.

Em face de décadas de histórias de seus super-heróis, repetidas de tempos em tempos para abraçar novas gerações, tematicamente reiteradas porque não há como fugir dos vernáculos que sustentam determinados protagonistas. What If…? é o ponto mais quadrinesco que a Marvel Studios alcançou desde seus primeiros passos com Homem de Ferro. Ponderar “e se…”, como o Vigia (Jeffrey Wright) nos convida, é como uma brincadeira que a animação compreende ser ideal de um gênero que, queira ou não queira, sempre estará conectado com a infância e uma noção mais fabular de mundo. Então, no auge da sua descartabilidade e justamente pela sua descartabilidade, já que cada universo inédito aos espectadores se prolonga por pouco mais de 30 minutos em cada episódio, já que a série também não se inibe de aniquilar em cada um deles alguns de seus maiores medalhões, como o Homem de Ferro, ainda assim, a Marvel resgata o que há de valoroso nas mesmas histórias contadas de novo e de novo, para sempre.

Assim sendo, não é como se a série buscasse ser uma antologia, como Star Wars: Visions, na qual animadores japoneses, rejeitando compromissos com o cânone, simplesmente propunham suas próprias perspectivas em meio ao universo da franquia. Na realidade, a animação do Disney Plus depende do cânone para que exista, pois suas possibilidades partem de uma premissa central comum a todos os infinitos universos – ora, não há o Thor (Chris Hemsworth) sendo filho único se ele não o fosse originalmente, assim como não há o Dr. Estranho (Benedict Cumberbatch) perdendo o coração ao invés das mãos se no filme de 2016 o oposto não tivesse acontecido. Sejam as mais iconoclastas como a dos zumbis ou as mais pé-no-chão como a da Capitã Carter, as histórias contadas pelo Vigia partem de princípios que atravessam espaço-tempo, como o amor de Steve e Peggy, a busca por identidade de T’Challa (Chadwick Boseman) e a responsabilidade de Peter Parker (Hudson Thames), mesmo diante do cenário mais apocalíptico.

Portanto, narrativas que seriam contadas nos cinemas em mais de duas horas são reconfiguradas a meia-hora, como se o restante da duração fosse complementado pela experiência precedente dos espectadores com aqueles personagens. Nisso, What If…? encaminha adiante o entendimento presente também em Homem-Aranha no Aranhaverso, de 2018, de que a ideia de multiverso não é apenas perfeita para os gibis de super-heróis porque impulsiona vendas, mas igualmente como resistência de um gênero que desde seu princípio, construído sobre os escombros das revistas pulp, confronta a sua própria descartabilidade. Quando novos Homem-Aranha surgem e podem ter as suas trajetórias resumidas a revistas em quadrinhos, as quais compartilham entre si as suas essências, seus dramas e simbolismos, um super-herói consegue sair do corpo de brinquedo oco, brinde de promoção de rede de fast food, para que uma criança não se aposse meramente de sua forma, suas armas e armaduras, só que também personifique o seu conteúdo.

Desse modo, a produção abdica de uma dramaturgia puramente cinematográfica para progredir, cena a cena, de maneira similar a um quadrinho, apropriando-se de um ritmo narrativo que martela a todo instante para nós que a história assistida é acima de tudo uma narração, intermediada pelo Vigia. Por isso, a animação consegue até mesmo se desvencilhar da questionável inexpressividade dos seus personagens, os quais parecem se manifestar muito mais por onomatopeias do que por performances de atores.

Da autoimportância que os filmes-solo dão a coisas banais como um background para o colete usado pela Viúva Negra em Vingadores: Guerra Infinita, What If…? se restringe ao essencial, mesmo que esse essencial seja um episódio tão lúdico quanto o do Thor festeiro, o qual se aproveita o máximo da dimensão de playground desses universos, como se a própria Terra fosse um cenário de quarto de uma criança e seus brinquedos de heróis pudessem cruzar países com o simples poder da imaginação, indo da escrivaninha para a cama.

Se, para alguns, o capítulo dos mortos-vivos poderia render uma temporada inteira, explorando as minúcias de cada evento que, nele, acontece em questão de minutos, para a Marvel Studios, contar uma história nunca foi tão preciso quanto nessa série. Por sinal, levando em consideração o final aberto desse episódio, o qual provavelmente será retomado em uma próxima oportunidade, a concepção de esperança que o permeia, apesar dos pesares, só poderia culminar nas reticências otimistas que o encerra.

No seriado, a criadora A.C. Bradley guia cada história em vista de um propósito maior que o puro experimento infantil, mas sem ignorar que o contexto é o do experimento infantil, do fato que ora ou outra marmanjos se perguntam se o Superman conseguiria derrotar o Thanos. Na animação, imaginar T’Challa como o Senhor das Estrelas é também colocar o próprio lugar de representatividade do personagem em xeque. Para além de Wakanda, o impacto do herói – e de Boseman sobretudo, tendo falecido ano passado – é interplanetário.

Mas como conciliar a brincadeira e não esvaziar ainda mais histórias, formas e personagens que, nos cinemas, querem ser o epítome de importância, mesmo que a cada lançamento só se fale sobre as cenas pós-créditos e não o filme em si – possivelmente porque há pouquíssimo a se extrair dessas obras que não seja congratulá-las como o “novo acerto Marvel”? Por isso, será que o fato de What If…? ter tido um lançamento menos escandaloso que as demais séries já lançadas pelo estúdio não atesta a favor da animação? Ora, não à toa um dos auges de seu engajamento foi o confronto entre o Thor festeiro e a Capitã Marvel (Alexandra Daniels), por ser parte desse fetiche nerd em colocar seus brinquedinhos para se enfrentar. Contudo, em consonância a isso, constrói-se a narrativa de um mundo “perfeito” no qual Loki (Tom Hiddleston) não foi retirado do seu pai. Logo, em um cenário no qual um possível apocalipse seria causado por conta da imaturidade do Deus do Trovão, as cenas de ação não contrapõem a festa dele, mas é parte dela.

Por isso, em demais episódios, se é para os fins do mundo flertarem tanto com a comédia quanto no dos zumbis, a la Zumbilândia, ou serem um pouco mais nebulosos quanto o causado pelo Ultron (Ross Marquand), A.C. Bradley e os demais envolvidos no projeto não apenas precisam criar histórias, mas escutá-las, entender o que cada uma delas requer em detrimento de colocá-las todas em uma fórmula. Não que a produção alcance a grandiosidade do storytelling – há bastante irregularidade em alguns episódios, principalmente no com Killmonger (Michael B. Jordan) como protagonista, que exemplifica que a série, embora avance mais que a maioria das obras do cânone Marvel, também não se dispõe a ir tão a fundo nos estudos de seus personagens. Entretanto, ao passo que uma das questões do Vigia é se, em um multiverso de possibilidades, o seu destino é determinado pela sua natureza ou pela natureza do seu mundo, o episódio sombrio com o Dr. Estranho, por existir sem qualquer punchline no fim dele, já responde a pergunta.

Logo, junto com Loki, a primeira temporada da animação movimenta as empreitadas da Marvel Studios depois de Vingadores: Ultimato a um terreno mais autoconsciente que, ainda assim, não se priva de enfim crer no potencial da ficção por si só – e não no potencial dela para simplesmente vender o filme seguinte. Se, por um lado, o personagem de Tom Hiddleston na sua série-homônima visitava um lugar que encarnava o conceito de “easter egg” de maneira quase paródica – imagens sem contexto, pois seus universos haviam sido apagados, assim como as referências costumam ser uma celebração da insignificância -, por outro, o Deus da Trapaça encontrava-se em crise em relação a sua própria função narrativa, impedido de desvirtuar-se da sua história-base, de ser algo para além de sua forma. Dito isso, enquanto fãs esperneiam na internet quando a suposta essência dos seus heróis é perturbada porque a cor da pele ou o cabelo estão diferentes, a Marvel coloca-se à disposição para confrontar as relevâncias e irrelevâncias do meio.

No fim das contas, no episódio final da temporada, quando a Viúva Negra do futuro devastado por Ultron questiona o Vigia sobre o seu papel em relação às histórias que observa, What If…? exemplifica a sua particularidade metalinguística, rejeitando a liberdade de uma antologia como Visions. “Diga, você fez pipoca enquanto o Ultron assassinou meus amigos e queimou meu mundo até virar cinzas?”, pergunta a personagem, em clara alusão ao fato de que boa parte da Terra, anos atrás nos cinemas, estava sujando os seus dedos de manteiga enquanto Thanos extinguia metade da população do universo. Era só uma história, não é real, por que se importar?

Portanto, na fase dos processos terapêuticos da empresa, seja para revisar o cânone com um elenco multifacetado, seja para literalmente estudar as psicologias dos seus personagens, What If…? enxerga as entranhas de uma franquia que ou passa a se importar de verdade com suas histórias, não apenas os grandes-eventos, mas os mais triviais, ou então implodirá.

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